Falando Nisso




A TV e o cinema redescobrem Mato Grosso do Sul. O estado deixa de ser apenas uma citação casual nas tramas e agora torna-se uma opção frequente de cenário para as locações. Como foi que isso começou e com quem? Grande contribuição foi dada a partir da década de 60, especialmente pelo protagonismo da atriz Glauce Rocha e dos cineastas-atores-produtores David Cardoso e dos irmãos Lahdo (Bernardo e Abboud). Quando a campo-grandense Glauce morreu prematuramente aos 41 anos, em outubro de 1971, havia feito 29 filmes, 9 novelas e 13 peças de teatro e figurava entre as maiores atrizes do Brasil.

 
O maracajuense David começou como continuísta e assistente da Pam Filmes, empresa de Mazzaroppi, que em 1963 deu a ele uma pontinha no filme "O Lamparina" e abriu o caminho que percorre até hoje, no qual já realizou como ator, diretor e produtor mais de 60 longa-metragens, além de atuar em 10 telenovelas e algumas séries. Coube aos irmãos Lahdo, nesse ciclo instalado na década de 60, outra proeza maiúscula: rodar um longa inteirinho em Campo Grande e região: "Paralelos Trágicos". Com apenas uma câmera e 83 minutos, o filme preto-e-branco de 35 mm foi realizado em 1965-66 e teve pré-lançamento no dia 13 de janeiro de 1967, no Cine Alhambra - que hoje, infelizmente, não existe mais, teve igual destino ao que foi dado ao relógio da 14 de Julho e ao coreto da Praça Ary Coelho.
 
Depois de Campo Grande e Corumbá, sofrendo a censura da ditadura militar, o filme dos irmãos Lahdo ganhou o eixo Rio-São Paulo e chegou ao exterior, onde despertou admiração e perplexidade. Afinal, um longa dramático e com apenas uma câmera, sem os recursos mais avançados da época, impressionaria, sim, como impressionou o francês Jean-Claude Lelouch, festejado vencedor dos maiores prêmios do cinema, entre os quais a Palma de Ouro de Cannes. Lelouch viu e gostou tanto que para seu filme "O Sol se Põe no Oeste" chegou a relacionar o nome de Abboud no elenco. Abboud não foi. Ficou por aqui manejando a câmera Arriflex, com seu irmão Bernardo, com quem também fez as cenas de estréia do primeiro seriado da TV tupiniquim, o antológico "O Vigilante Rodoviário".
 
O ciclo seguinte na história da presença regional no universo do cinema e da tevê veio na transição dos anos 1970 para 1980, graças à performance de atores, atrizes e intérpretes como o aquidauanense Rubens Corrêa, a campo-grandense Aracy Balabanian, o comediante corumbaense Nelson Borges de Barros (dublador de famosos personagens dos seriados da televisão) e o bela-vistense Ney Matogrosso, um eficiente divulgador do estado onde nasceu. Vieram os anos 80 e com eles a confirmação de dois grandes talentos a serviço da projeção midiática de Mato Grosso do Sul: o músico campo-grandense Almir Sater e o cineasta Joel Pizzini, nascido no Rio de Janeiro, mas criado em Dourados e morador de Campo Grande antes de retornar às terras cariocas. Pizzini é vencedor de inúmeros prêmios com curtas e documentários aplaudidos dentro e fora do Brasil.
 
Em 1990 a novela "Pantanal", escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, garantiu as melhores audiências da curta história da TV Manchete. Além de exibir a exuberância da região pantaneira, ainda cristalizou o apelo artístico-ecológico ao dar um dos papéis de destaque ao violeiro Almir Sater, como o peão Trindade. No ano seguinte, a mesma TV Manchete reforçou a motivação midiática do estado ao fazer de Sater um dos protagonistas do papel-título na novela "Ana Raio e Zé Trovão". Ele trabalhou depois em "O Rei do Gado", na Globo, em 1996, e "Bicho do Mato", na Record, em 2006.
 
Nos últimos 20 anos, enquanto vigora a birra de quem acha desnecessário adotar um nome de maior personalidade ao estado, a telona e a telinha abrem generosos espaços para introduzir neles as paisagens sul-mato-grossenses. Os longas "Cabeça a Prêmio", de 2009, dirigido por Marco Ricca, e "Carmo", dirigido por Murilo Pasta e produzido por Roberto d´Ávila, trouxeram para cá celebridades como Márcio Garcia, Fúlvio Stefanini, Rosi Campos, Otávio Muller, Alice Braga, Cássio Gabus Mendes e o espanhol Feles Marinez, que fez, entre outros, "Má Eduação", de Pedro Almodóvar.
 
As telenovelas seguem na mesma trilha. Em 2005, Priscila Fantim e André Gonçalves gravaram cenas de "Almas Gêmeas", da Globo, em Bonito. No final de junho passado a cidade recebeu parte do elenco e da produção da emissora para as gravações de "A Vida da Gente", próxima novela das seis. A atriz Fernanda Vasconcelos encantou Bonito e saiu do lugar mais encantada ainda. E no início deste mês de julho o diretor e produtor Daniel Filho confirmou Corumbá como palco central do episódio "A reacionária do Pantanal", da nova série global "As Brasileiras". No elenco, as atrizes Juliana Paes, Regina Braga e Reneé de Viellmond, o ator Danton Melo e a cantora Sandy.
 
Mas a raiz maior, a primeira semente, com certeza foi plantada em 1932 por Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes, que calaram a boca dos incrédulos da época e provaram a possibilidade guaicuru como protagonista da produção cinematográfica e não somente um cenário ou uma citação. O estado deve reverência e reconhecimento aos 52 minutos e 34 segundos do documentário romanceado "Alma do Brasil", de Luxardo e Wulfes, e ao seu elenco, capitaneado por Conceição Ferreira, Antônio Cândido, Antônio Ribas e Octaviano de Souza.
 
Produzido e rodado em Campo Grande e Nioaque, "Alma do Brasil" faz uma incursão no episódio que ficou conhecido como Retirada da Laguna, uma das passagens marcantes da Guerra Brasil-Paraguai. Sua estréia ocorreu em 19 de julho de 1932, no Cine Broadway, no Rio de Janeiro. E seus realizadores deixaram um valioso testamento, conceitual e cívico, nos letreiros de abertura do filme, uma verdadeira afirmação de fé, convicção e aposta na capacidade universalizadora do cinema.  Assim estava escrito nos caracteres, com a grafia de época: 
 
"Distribuido pela Ideal-Films este trabalho documentário do esforço de nossa Terra correrá todo o nosso vasto Paiz sem vizar interesses pecuniarios, mas sim, provar que se pode fazer films tão bons quanto os melhores que importamos com sacrificio para a riqueza Nacional!"
 
(*Edson Moraes, corumbaense radicado em Campo Grande-MS, é jornalista)